Da janela...
Ainda me recordo de ter visto que a janela estava aberta e hoje tenho a certeza de que tu também a viste. Estava aberta, mas não o suficiente para me perturbar. Nunca o suficiente para te perturbar. E assim seguimos em indiferença, afinal para nós era apenas e só uma janela.
Neste quarto que um dia foi nosso ainda se respira luxúria e desejos carnais, ainda te respiro quando fecho os olhos e te vejo chegar a mim. Ainda oiço os teus passos sobre o meu silêncio, ainda sinto o teu toque quando a noite tinha laivos de entrega e nos prendia em partilhas de cigarros, a nossa breve reconciliação com a finitude do acto em si e com a crueza dos nossos modos de sentir.
Nenhum de nós confessou quem deixou a janela aberta. Talvez tenha sido eu. Talvez tenhas sido tu. O teu lado da cama ainda sente a falta do teu corpo e eu neste momento ainda procuro encontrar o teu cheiro e o som das cores com que pintavas o encontro dos nossos corpos. Ainda procuro o teu cheiro no meu corpo, aquele aroma de proximidade e de suor com que me impregnavas enquanto fomos um só corpo, enquanto te olhava nos olhos e bebia o néctar da comunhão pelos teus lábios. E hoje respiro apenas o cheiro que a tua ausência provoca em mim. Esse cheiro que se mistura com o ar saturado de cigarros solitários.
Afinal a janela esteve aberta tempo demais para nós os dois e nenhum de nós pareceu reparar que enquanto esteve aberta tudo o que um dia foi nosso se desfez. O nós deixou de existir e deu lugar a um eu e a um tu diferenciados. E não houve surpresa, apenas constatações. Cruzaste a ombreira da porta, voltaste-te para mim e disseste-me para eu fechar a janela.
E a janela foi fechada! Nada mais havia para sair por ela e... e podiam sempre entrar as recordações que ferem como a luz branca da manhã nos olhos do despertar e o silêncio da noite nos ouvidos da solidão. Foi melhor fechá-la agora, já que ninguém a trancara antes! Mas a porta,... a soleira que alguém cruzou sem quase se despedir, manteve-se aberta... (Alguém poderia entrar...).
No interior do quarto, iluminado pela janela fechada, alguém esperou... e quantas vezes quase desistiu,... quantas vezes lhe apeteceu abrir a janela em par para que, pelo menos, a dor das recordações lhe fizesse companhia... Às vezes já nem olhava a porta, perdia a esperança que alguém alguma vez mais pudesse entrar por ela. E já nem queria um regresso...apenas um novo ingresso...um tímido olhar (porque deixara de acreditar em entradas triunfantes). E um dia, sem dar conta, olhando a porta vazia, ouviu alguém bater... Mas como, se a porta continuava vazia? Lembrou-se então da janela (a janela que manteve religiosamente fechada durante todo o tempo em que as esperanças se centravam na porta) e lá estava um olhar... um olhar novo, que deixava ver corpos quentes e almas entregues, suores escorridos em gotas de sensualidade e prazer, todo um novo horizonte em que o céu tocava o mar e em que os azuis distintos de ambos se fundiam a cada momento. Mantendo, contudo, cada um, as suas estrelas. Correu então para a janela, mas lembrou-se da porta:
- Tenho de fechar a porta, mais nenhuma corrente de ar me levará ninguém com ela.
Posted by Dameuntango | 9:05 pm
Para que importam as janelas e as portas quando não vemos mais nada à nossa volta além do "nós"?!
Mas, depois, baixa o pano, acaba o momento perpetuado e sente-se a cama, o tapete, a janela...
Então, se não se sente o outro, por que não sair pela porta, deixá-la aberta e sair pela janela?!
:)
Posted by Eli | 2:02 am
abre-se a janela,
vive-se nela
palavras soletram-se
no espaço aberto dela
um abraço de já madrugada...
Posted by Refúgio Lunar | 2:32 am
Cheguei cá hoje. E fui literalmente absorvida pelos textos que encontrei. Li-os de uma assentada, sem parar, porque essa hipótese deixa de existir à medida que vamos desfiando as palavras...
De certeza que vou voltar... para espreitar pela janela...
Beijo ***
Posted by CLÁUDIA | 1:10 pm
Janela fechada, porquê?, sinceramente não compreendo… Tudo o que escreves parece oposto, uma luta constante de desejo e negação…existe algo para sair, algo para entrar, desejo, recordações, silêncios…mas, existe sempre algo, uma simples brisa, um grão de areia que fecha ou não permite essas portas e janelas de um quarto que deseja ou necessita de estar vazio…
Não sei se foi interpretação, ou auto analise, foi o que pensei deste texto tocante. Um abraço
Posted by Morfeu | 10:14 pm
Belíssimo! Valeu a pena ter chegado aqui curiosa, e ficar, como num arrepio a ler esta tua prosa, cheia de poesia! Escreves muito bem! Beijinhos, continua...
Posted by Maria Carvalho | 11:01 am
Não conseguimos fechar uma janela se ainda estivermos debruçados no parapeito.
Mais importante: Não conseguimos abrir uma Nova janela, se continuarmos debruçados na outra janela.
Um beijo
Posted by Chocolate | 1:01 pm
Só para mandar um abraço, já te mandei aquilo do blog. vé la se gostas.
abraço, porta-te bem.
Pedro
Posted by Blogger | 7:17 pm