Wednesday, September 29, 2004 

O último cais...

Como se acendem e navegam
Lá onde nunca desembarquei
No porto fraco vagabundo em que me deito
Não penso nessas vagas em que me ajeito

Lá onde fiquei, despeço-me altivo
O rosto vagabundo em vagas que me levam
Não me navego,

No porto em que me desembarquei.
Altivas vagas são rostos que me levam
Não me navego,
Lá onde nunca me sonhei
A. Ribeiro


Não me navego porque sempre temi comandar o barco da minha vida. Nunca ousei alterar a rota e duvidar da bússola. Nunca parti por temer as tempestades da vida.
Sempre preferi a clausura da segurança do cais, consubstanciada nas amarras com que me deixei aprisionar, contudo, sei que os barcos não foram criados para ficarem eternamente ancorados.
Na plenitude dos versos encontro as vagas desavindas, aquelas a que assisti e que me levarão onde já outros foram. Sonho ou realidade, içarei a âncora do medo e largarei até onde o mar me levar. A bússola indicará o rumo que eu decidir.

Tuesday, September 28, 2004 

"Acordar não é de dentro. Acordar é ter saída..."

A noite renuncia a si própria e dá lugar ao despontar oriental do dia. Cada dia é um mistério que se adensa por cada hora que passa.
Acordo e dirijo-me à janela. Deixo-me envolver pela rotina que se traduz na repetição mecânica e pleonástica de todas as acções e disperso-me na contida vastidão do quarto.
Recordo Jade e as suas inquietantes interrogações, agora também minhas porque a mim as dirigiu. As suas interrogações que afinal também são as minhas. De Jade relembro aquele olhar tão profundo capaz de abrir qualquer porta. Senti-me desprotegido e como tal recuso-me a comungar da sua presença, paradoxalmente, recuso-me a esquecê-la . A solução deste mistério está envolta em brumas de incerteza.
A resposta surgiu, simples e redutora, sob a forma duma carta. Mera articulação de palavras. Nada mais que a junção de fonemas inaudíveis e revestidos das emoções de quem lê, uma vez que todos os diálogos escritos são detentores do conjunto de significações do destinatário. Assuma ele a existência que entender.
A missiva está terminada. Nela divago até pronunciar que gostaria de contemplar o mundo pelo seu olhar. A minha emoção nunca será igual à sua, por isso posso afirmá-lo sem qualquer temor ou reserva. A emoção que depus nas palavras ficará apenas gravada neste instante que foi meu e que retorna ao tempo, o detentor de todos os momentos.
Selada a carta, avoluma-se o mistério de hoje. Aquele que radica em si mesmo e diverge de todos os mistérios passados e futuros.
Abro a porta, vislumbro a saída e endereço a carta ao destinatário. A roda do destino acaba de voltar a girar.

 

Todas as portas são subterfúgios de fragilidades...

Dou por terminada a minha cruzada quando abro a porta do quarto. Vejo-me recebido por todas as existências que por aqui ficaram e por todas as dúvidas que por cá deixei.
A carta de despedida encontra-se no mesmo lugar, ninguém a terá lido. Tomo-a em minhas mãos e releio-a. Apercebo-me que deixei a porta aberta e apresso-me a fechá-la.
Se tudo neste quarto é comum ao meu interior, conforme alguém me disse, então encerrarei a porta pois temo que aquilo que tenho como meu se evada e me abandone.
Vejo-me absorvido numa rede de considerações sobre a utilidade das portas. Defendo que são construções defensivas, vulgos escudos para mascarar fragilidades. Afinal esta é a minha inacção habitual.
Concluo que as pessoas crescem, amadurecem, sofrem e edificam portas, pois enquanto crianças todos nós escancaramos os nossos seres e à medida que crescemos tendemos a convergir em nós e para nós próprios. E aí construímos todas as portas.
Falta-nos somente encontrar as chaves que as abrem, chaves essas que tantas vezes fingimos não encontrar.

 

E cai em torno do ocidente o reduto das recordações orlado em chamas...

Toma-me a pretensão de regressar ao quarto. Ironicamente a chuva que dele me retirou é a mesma que acompanha o meu retorno.
Enquanto caminho oiço sirenes de bombeiros que cruzam o silêncio da noite. Alaridos da multidão que se interroga e aflige em emoções vazias. Alguém exclama que o moínho está a ser consumido pelas chamas. Acaso será verdade? O clarão no céu assim o indicia.
Dirijo-me a ele seguindo passos heterónomos. É esquisito como o mórbido prazer da destruição nos domina. Perdido na hipotética veracidade desta afirmação acerco-me do lugar onde se encontra situado o moínho. Este aparece envolto em chamas.
As labaredas cumprem indomáveis a sua missão, a água é ineficaz perante a acção una e conjugada do fogo e do vento. Esta é a aliança de destruição celebrada por ambos.
Indubitavelmente trata-se de um grandioso espectáculo de luz. O moínho será destruído e não haverá aplausos.
Dou por mim a pensar que o curso das nossas recordações não deveria desaguar no mar do esquecimento. Inelutavelmente acabaremos por abrir mão delas, contudo considero que a ter que perdê-las, estas deveriam ser consumidas pelo fogo, uma vez que mesmo reduzidas a cinza, não deixariam de existir. Apenas ressurgiriam sob nova forma. Mais do que mera destruição, o fogo assume o carácter de transformação e do renascimento.
À medida que os momentos se sucedem, o fogo cumpre a sua natureza. O moínho é agora cinza, escombros e nada... vulgares vestígios do que houvera sido. Decido regressar ao quarto pois nada mais há para ver.
Detenho-me e lanço para trás um último olhar. Reconheço o gato preto que novamente fita a lua. Nem a destruição do moínho perturba os seus serenos êxtases ao luar.
Findo o espectáculo e encerrado o pano, o último espectador abandona a plateia.
Regresso ao quarto.

 

"A melancolia não é um arfar febril, é brando alcoolismo de silêncios..."

Subitamente e sem qualquer indício começou a chover. Agora que sinto a suficiência da chuva, vejo fugir ao esquecimento alguns momentos em que choveu.
Escoltado pela acção da volúvel memória surge a representação de uma noite de temporal. Relembro como choveu toda a noite. Assisti melancolicamente à fúria da chuva na vidraça da janela do quarto que tenho como meu. É estranho como são indissociáveis estas duas realidades- chuva e melancolia...
No som surdo da ébria chuva que se estilhaçava nas vidraças descodificava-se um apelo. Apenas queria entrar. Talvez a chuva esteja cansada do seu isolamento e eu nunca lhe abri a janela. Nunca entendi o seu sofrer.
Enredo-me em considerações sobre a chuva. Agora tenho uma nova concepção desta, a consciência da sua intrínseca suficiência conduziu-me a tal.
A chuva não se derrama somente em pingos fugazes, a chuva reveste-se de toda a melancolia e prostra-se a nossos pés. Contudo, eu voltarei a fechar a janela e a melancolia, essa dissolvê-la-ei na sombra dos meus passos.
Nas arcarias nuas e outonais em que me abrigo, a chuva continua a cair. E aqui não há janelas. A chuva cai, pingo por pingo, melancolia por melancolia, silêncio por silêncio... ininterruptamente.

Thursday, September 16, 2004 

Ninguém pára a grande roda...

Ouso percorrer um novo caminho na perseguição de tudo o que me diz respeito e que por mim passou. Procuro tudo isso e necessariamente procuro-me em convergências de ruas e encontro-me por divergências esparsas de todos os encontros a que faltei.
Nas lajes da calçada encontram-se gravados os passos tristes de todos aqueles que por ela desfilam vivências. Todos esses desconhecidos que não passam de uma estranha corrente de oprimidos subjugados à transcendente constância de todos os momentos, vulgarmente conhecida como rotina.
Quebra-se um elo da corrente... de súbito uma figura feminina liberta-se do domínio da minaz rotina e encaminha-se em sentido contrário a todos os outros transeuntes. A corrente retoma o seu caminho passados alguns segundos e a roda do destino gira novamente no mesmo sentido. Ninguém sentiu a sua ausência.
Decorridos alguns passos encontramo-nos frente a frente, apenas porque sigo o caminho dos outros, aquele que é indicado pela grande roda e ao qual me vejo aprisionado. Os nossos olhares cruzaram-se e vejo-me revelado. Nunca houvera sentido algo assim, nunca um desconhecido houvera rasgado uma janela para o meu ser como ela fez. Sem ser proferida qualquer palavra, muito foi dito. Tanto foi dito apenas por um olhar que me queimou até à alma como se soubesse tudo o que perdi ao longo da vida.
Hesito em perguntar-lhe o nome, afinal o nome segundo o que recordo é apenas o "gemido dos esquecidos", o mero "som de um rosto surdo que repito à exaustão", não mais do que isso. Ultrapassada a hesitação pergunto-lhe o nome. A resposta assume a forma da eufonia de um murmúrio- Jade. A conversa flui livre de qualquer amarra...congregam-se as respostas às dúvidas formuladas. Todas as angústias se encontram consubstanciadas nas nossas existências. O tempo passa veloz, as palavras multiplicam-se e a hora da despedida surge. Cada um de nós segue o seu caminho levando consigo um pouco do outro, pois uma vez entrados na vida de alguém, jamais sairemos desse reduto. Levamos em nós as existências de todos aqueles que fizeram seus os nossos passos.

Tuesday, September 14, 2004 

Hoje é o dia em que o sonhar acaba...

"Mesmo eu, o que sonha tanto, tenho intervalos em que o sonho me foge. Então as coisas aparecem-me nítidas. Esvai-se a névoa de que me cerco. E todas as arestas visíveis ferem a carne da minha alma. Todas as durezas olhadas me magoam o conhecê-las durezas. Todos os pesos visíveis de objectos me pesam por a alma dentro."
B. Soares

Esta é a minha resolução para hoje...em tempo algum voltarei a sonhar. Desnudo as madrugada de todos os espectros que nela encontram refúgio e que tomam a designação de sonhos. Recuso-me a ser novamente envolvido nesta teia de incertezas. Nebulosas. Etéreas. Vãs. Não mais que meras ilusões e, como tal, não têm qualquer fundo de veracidade.
Não em mim lugar para os sonhos. Neles nunca houve lugar para mim. Hoje é o dia em que eu renuncio. Não sonharei mais. Jamais

Monday, September 06, 2004 

No ocaso todas as respostas são indulgentes...

Todos os passos se encontram traduzidos em deambulações vãs. Ruas labirínticas , construções de Dédalo onde se cruzam existências vazias e multiplicam encontros casuais.
Toma-me a pretensão da evasão, mas temo que tal como Ícaro, as minhas asas sejam de cera. Temo que a ilusão da liberdade me faça aproximar demasiado do sol e a cera derreta. Inquieta-me que a fragilidade das ilusões seja desnudada.
Retomo a minha peregrinação interior nas horas que por mim passam. Sempre o eterno retorno ao tempo, a perene subjugação ao mestre das horas desiguais. Desta vez não procuro sentir tudo de todas as maneiras, procuro somente sentir-me. De todas as maneiras.
Persigo-me por todos os lugares em que vagueio. A inelutável passagem do tempo vem anunciar o aproximar da noite. Busco-me em ruelas que me conduzem ao velho moínho votado ao abandono. Dirijo os meus passos até ele. É o velho moínho que marca a fusão do ocaso com a aparição da noite. Nas paredes brancas que constroem a sua solitária presença, vejo reflectida a despedida do dia em laivos que pressagiam a chegada daquela que sempre vem.
A noite cumpre uma vez mais o seu fado e encobre o céu com o seu manto negro. Apenas a lua derrama a sua luz. Agora que anoiteceu posso ousar voar mais alto.
Finalmente invado o reduto da noite em busca de respostas. Oiço um ruído estranho semelhante a passos suaves que se aproximam, volto-me e vejo um gato preto que se encaminha altivamente para o muro que delimita o moínho. A minha presença não o perturba, dirige-se ao muro onde se senta e comtempla a lua. O que procura na lua um ser provido apenas de instintos gerais?
Invejo a sua serena quietude que não pode ser minha quando a lua indulgente é a resposta para todas as dúvidas.

Wednesday, September 01, 2004 

"A verdade é cinza arrefecida. Esparsa, sem forma, esmaecida. Que o vento espalha pelo chão"...

Encontro-me numa qualquer rua. Ao fundo, o meu olhar vislumbra duas presenças. Não mais que vultos. O silêncio traz até mim um apelo:
- Desta vez diz-me a verdade.
O apelo converte-se em passos que se afastam e vejo-me refém da dúvida que invade o bastião da introspecção. A verdade? O que é a verdade?
A verdade é tudo aquilo em que acreditamos, uma vez que enquanto acreditarmos tornamos reais as nossas crenças. Toda a verdade é composta de inúmeras verdades e a minha verdade é apenas mais uma. Esta é a minha verdade.

 

Ao vento...

"Ó vento de onde vens
Que vais assim desabrido?
Invejo a sorte que tens
De fugir sem ser seguido
Eu estou pior ó vento
Pois se me quero evadir,
Vai comigo o pensamento
Que me acusa de fugir,
E não há um só lugar
Onde me possa isolar."
A.Monteiro


Interpelo o vento. Endereço-lhe as minhas palavras. O vento passa por mim e leva consigo o que lhe entreguei. As palavras que proferi e que tornei minhas deixaram de o ser. Porque todas as palavras pertencem ao vento. Todas as palavras são levadas por ele... todas as palavras retornam à inconstância do vento.
Este é o vento que não se revela. Este é o vento que me revela. Este é o vento que por mim passou. Uno, inconstante e revolto. Esta é a sua natureza.
E tu vento, o que tens para me dizer?

on-line

Powered by Blogger

online
Spyware Remover Page copy protected against web site content infringement by Copyscape