Thursday, October 27, 2005 

Golpes de frio...

Sinto frio pelas palavras que não disse, aquelas que deixei perdidas num lugar onde o tempo impera, numa adição desordenada de horas cáusticas. Sinto frio quando gemem guitarras que impedem que o amanhã adormeça na minha boca, aprisionando-o em escalas e claves de sol.
De tanto o que me é permitido sentir, apenas o frio. O mesmo frio que se passeia no olhar e se cristaliza numa multiplicidade de faltas intrínsecas. E eu oiço o frio escorrer e bater nas vidraças porque me faltas. Porque te falto. Sobretudo porque me falto.
Sinto frio quando a bússola é apenas uma palavra. Não mais do que uma palavra. Vazia. Fugaz. Sinto frio quando caminho descalço em trilhos marmóreos de ninguém, nesta heteronomia que esculpe a cinzel as minhas fragilidades.
Sinto frio quando as luzes se apagam em metades inatingíveis e a noite me segreda limites. E em cinza edifico razões, esta cinza que um dia foi lava e fogo. Continuo a caminhar envergando máscaras de sorrisos quentes que rigidificam afectos e me envolvem em labaredas de silêncios dormentes. E hoje não tenho senão frio e a nudez do presente…eu que um dia fui tochas, tempo e vulcões.

Sunday, October 23, 2005 

Perversão...

Das inúmeras maneiras de fingir. De todas as formas em que me recrio, em que te recrio, em que faço diluir sentimentos em razões ácidas. De todos os cenários e palavras vulgares que me tomam. De tudo o que trago guardado. De mim. São íntimos versos coados em ficção. Não tanto os versos, mas a falta deles - as suas sombras. A ausência da sua impressão, da sua análise abstracta, ou do bairro de ilusões onde vivo intermitentemente. Guardo de tão pouco, as ilustrações ou hipóteses absurdas de tudo o que existe em mim. Não sei esculpir a realidade física. Tudo permanece alheio ao concreto, na indefinição de uma dimensão própria, que vou esquecendo por completo, porque não a sei sentir. Perco-me.
Por preferires a prosa aos versos, prendes-me irremediavelmente ao rectângulo das palavras que adoecem na minha boca, contaminadas pelos pronomes da minha impessoalidade.
Misturo significantes e significados, rasgo a semântica e concedo novos princípios à sintaxe do amanhecer, quando na verdade há muito que anoiteceu em mim. Tenho os sentidos subvertidos, dou a conhecer o que oiço com o olhar, o que toco com o ouvir e o que vejo com o tocar. Assim, envolvo-te num estranho mundo de distorções e de falsas aparências e sorrio quando acrescentas mais uma convicção à tua esfera de certezas.
É como viajar, dizer-te-ia eu. Há a novidade da paisagem aos teus olhos, há o ímpeto de pensar todas as sensações num ramo de crisântemos. Por isso me invento em partículas de paisagem diversas, para que o choro das árvores do meu coração não se torne uma ideia em si mesma, e exista sempre em ti, um fascínio cruel que te faça acabar o dia diante de mim. Serei sempre outro - um lago abstraído do seu reflexo, um livro folheado na janela de um quarto. Porque afinal, não serei o outro nem o mesmo, se um deles necessariamente haveria de ser, só o sonho de um em ser o outro.
Deixo-te permanecer nessa falácia que te aconchega e que me serve. Nesse engano que eu provoco e alimento de modo perverso para saciar a tua fome de mim. Oiço as minhas palavras como se permanecesse em silêncio. Poderias tu reconhecer-me em tudo que não te digo? Nos meus hipotéticos gestos, artifícios da minha inquietação, nas minhas pequenas esperanças que afinal são pálidas torturas?
E no momento em que me falto, no momento em que me procuro entre faces e essências, ardem pequenos pedaços de mar que me abandonam em labaredas líquidas. E neste instante em que estou desprotegido, repicam os sinos quando a tua sombra encontra a minha e logo me apresso a sorrir. Tu retribuis o sorriso e mostro as mãos vazias que sabem a sal e a cinza. Sabias que as lágrimas também ardem?

(…Tenho um sonho derramado nas escadas da entrada. Se por ventura o tivesse em mim, mesmo que preso ao forro de um bolso meu, era semelhante a estar morto no chão, como uma poça de sangue num pátio de uma escola. Pois estaria crispado contra o meu corpo embrutecido pela tua ausência. De tudo quanto de si existiria, não seria mais do que um rasto do seu quietismo ou vasto silêncio. Por isso me aparto neste quarto sem intimas esperanças, curvado sobre um livro, anulando-me nos seus ínfimos sentidos…)

Walter e Joaquim Gilvaz

Sunday, October 16, 2005 

Da tua chegada...

Porque sei que um dia chegarás. No encontro dos espaços, na convergência do tempo, no final da distância. Chegarás somente, como se eu nunca tivesse esperado por ti, como se nunca te tivesse devolvido a espera.
Chegarás invocando a transcendência do vermelho nessa linguagem codificada de espaços rubros, onde de olhares se constroem palavras e do sentir se geram vocábulos e fonemas. E assim fundiremos sons e passados num mesmo lugar, daremos corpo a tudo isto que nos consome e seremos Fénix e cinza. A simbiose perfeita de tudo o que um dia chegaremos a ser.
Tenho contaminado os modos de sentir. Os modos de te sentir. Apenas me encontro em aumentos das distâncias, em indefinições divergentes e em todas as formas assumidas pelas fugas. Procuro-me em realidades divididas em dualidades incapazes de comungar da partilha. Como se me procurasse em amor e na sua ausência. Como se quisesse silenciar a tua falta gritante bradando à tua negação.
Porque tens procurado por mim e não me chegaste a encontrar. Porque há portas que fecham em espectros autistas. Porque há marés de serenidades e de encontros. Porque um dia chegarás.

Sunday, October 09, 2005 

O acerto do silêncio tatuado...

O piano nunca chegou a ser silenciado. Fecho os olhos e inspiro a melodia que se passeia nas tuas mãos e se refugia nos teus olhos de violinos. Ainda hoje me preencho a espaços vazios que não deixaram de ser teus, mesmo quando nunca te pertenceram.
Fiz do fingir distâncias de nós e neguei-te em todas as espirais do tempo. Rasurei todos os teus mapas celestes e fechei todas as portas que foste abrindo nessa tua marcha de cumplicidades veladas. Recriaste a minha mitologia e foste Atlas por instantes, pois suportaste o meu mundo interior nos ombros, mesmo quando de sombras fiz emergir oceanos de segredos e de justificações brotaram continentes de sentir.
Porque no fundo me furtei a ti, como se te embriagasse com néctares de proximidade e comunhão, para depois não deixar que descobrisses o teu lugar em mim. Porque eu ainda me visto de receios e de passados, aqueles que me perseguem e são cárceres e carcereiros da minha capacidade de amar. Talvez seja eu que não me permito amar.
Há caminhos que se cruzam apenas uma vez e desta vez não estás aqui. Não serás mais cordas e amarras nas minhas tempestades interiores, aquelas que em mim convoquei para te envolver em desertos de sentimentos e marés de inutilidades.
E hoje não oiço os teus passos a seguir os meus. Não te vejo caminhar sobre os meus pântanos de apelos silenciosos. Não te vejo a guardar as minhas palavras, aquelas que nunca te disse por temer que as compreendesses em demasia. Não vejo o vento conduzir-se pelos teus cabelos levando um beijo meu. No fundo não estou em ti, mas tu estás em mim, pois tenho a pele tatuada pela tua ausência…e o piano, esse recolheu-se em silêncio.

Walter

Tocámos juntos o acerto das estações. Vimos os ponteiros do relógio perderem o rumo à nossa existência. As nossas mãos uniram-se num gesto comum.
Um amor infindável construiu-se das gotas de suor que derramámos, como quem sangra de si a existência, a fé e o pudor.
Respirámos no mesmo compasso. Cantei no teu ouvido, segurei a tua pele, penteei os teus cabelos.
Tu cruzaste o teu olhar com o meu, como quem receia perder o instante mágico das noites de prata. Desenhei nas tuas costas o caminho dos amantes e o teu abraço selou o meu desejo às estrelas.
Na manhã, a chuva cessa. O sol irradia, indeciso. O futuro que nos espera, também.
Pedaços de sentimento que formam papel de parede numa casa que passou a ser a tua.
Cubro o rosto com os lençóis, ainda presos com o teu cheiro. O meu corpo ainda guarda o ardor do teu toque.
Recordações.
Abro os olhos e lá estás tu, tatuado no eco das minhas palavras.
Loucura.
Voam sentimentos, que penduro como quem estende a roupa branca.
Clarividência.
Ergo o meu corpo pálido e vejo teu olhar preso no horizonte.
Fotografia.
Vejo a casa e o cheiro dos livros. Sinto o canto do vento na janela. Corto o doce que me deixaste na boca com um trago amargo de café.
O sabor que nunca passa.
Visto outra pele, outros olhos, e colo um sorriso falso no rosto.
O som da porta ao fechar, mostra o recolher de toda a dor que deixei para trás.
Fui a última nota que ouviste tocar.

Framboise

Thursday, October 06, 2005 

Voas comigo?...

Acabei por seguir em frente, nesse caminho de passos já gastos por quem nunca por aqui passou. Libertei a imensidão que havia em mim e espraiei-me onde a distância se recriou em paisagens e procurei reconhecer-me em relevos de tudo o que um dia abandonei. Afinal, um dia eu fui assim. Eu também fui assim.
Desconstroem-se os conceitos à minha volta, vejo-me rodeado desta indefinição que um dia foi inocência e dou por mim nas escadas do tempo em busca de mais. Mais alto, mais longe, mais além. Como se o tempo se convertesse em regressos e me trouxesse para os meus braços. Subo estes degraus que um dia foram sentimentos, imagens e fonéticas e permaneci onde o tempo toma a cor das horas que foram esventradas de sentidos.
Porque segui os degraus desta espiral sem olhar para trás. Segui imune a cansaços e derrotas antecipadas e abri as portas de par em par. Transformei a minha busca em passos e aproximei-me do limite do espaço, convoquei a transcendência de Ícaro e dei asas à vontade que de mim transborda. Abri os braços e vendei o olhar. Voas comigo?

Monday, October 03, 2005 

Sede de mais...

Quando o tempo anunciava manhãs subvertidas a recusas, as horas nunca foram mais do que insuficiências. Hoje o tempo continua desigual, dissolve-se em espelhos do que em mim guardo e perde-se em tons monocórdicos que preenchem com sofreguidão convicções vazias.
Trago no olhar duas luas, uma lua cheia de sentires inocentes e uma lua nova de palavras abandonadas, contudo ainda não sei conjugar em mim o verbo fundir. Não sou alquimista de interiores nem conheço os teoremas e proposições que pertencem ao cerne da existência, apenas conheço as imagens e o jogo de tonalidades de que me revisto nesta pintura inacabada. Não há apenas sangue nestas veias que tenho por minhas. Há bem mais do que apenas isso, corre igualmente sede de mais. Sede de buscas e de aceitações. Sede de horizontes meus. Sede de ti e por ti, que um dia me darás de beber pelas tuas mãos.
Fechei as portas à razão e desencontrei-me das palavras, porque a verdadeira compreensão não se faz de palavras, a compreensão ergue-se em metáforas silenciosas e encontros impessoais. Hoje o sentido do tempo é esparso e não se resigna a clepsidras e ampulhetas. Hoje defino-me em pontos e planos numa geometria que é muito mais do que rectas e compassos. Hoje procurei em ti um pouco mais de mim.

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