Das inúmeras maneiras de fingir. De todas as formas em que me recrio, em que te recrio, em que faço diluir sentimentos em razões ácidas. De todos os cenários e palavras vulgares que me tomam. De tudo o que trago guardado. De mim. São íntimos versos coados em ficção. Não tanto os versos, mas a falta deles - as suas sombras. A ausência da sua impressão, da sua análise abstracta, ou do bairro de ilusões onde vivo intermitentemente. Guardo de tão pouco, as ilustrações ou hipóteses absurdas de tudo o que existe em mim. Não sei esculpir a realidade física. Tudo permanece alheio ao concreto, na indefinição de uma dimensão própria, que vou esquecendo por completo, porque não a sei sentir. Perco-me.
Por preferires a prosa aos versos, prendes-me irremediavelmente ao rectângulo das palavras que adoecem na minha boca, contaminadas pelos pronomes da minha impessoalidade.
Misturo significantes e significados, rasgo a semântica e concedo novos princípios à sintaxe do amanhecer, quando na verdade há muito que anoiteceu em mim. Tenho os sentidos subvertidos, dou a conhecer o que oiço com o olhar, o que toco com o ouvir e o que vejo com o tocar. Assim, envolvo-te num estranho mundo de distorções e de falsas aparências e sorrio quando acrescentas mais uma convicção à tua esfera de certezas.
É como viajar, dizer-te-ia eu. Há a novidade da paisagem aos teus olhos, há o ímpeto de pensar todas as sensações num ramo de crisântemos. Por isso me invento em partículas de paisagem diversas, para que o choro das árvores do meu coração não se torne uma ideia em si mesma, e exista sempre em ti, um fascínio cruel que te faça acabar o dia diante de mim. Serei sempre outro - um lago abstraído do seu reflexo, um livro folheado na janela de um quarto. Porque afinal, não serei o outro nem o mesmo, se um deles necessariamente haveria de ser, só o sonho de um em ser o outro.
Deixo-te permanecer nessa falácia que te aconchega e que me serve. Nesse engano que eu provoco e alimento de modo perverso para saciar a tua fome de mim. Oiço as minhas palavras como se permanecesse em silêncio. Poderias tu reconhecer-me em tudo que não te digo? Nos meus hipotéticos gestos, artifícios da minha inquietação, nas minhas pequenas esperanças que afinal são pálidas torturas?
E no momento em que me falto, no momento em que me procuro entre faces e essências, ardem pequenos pedaços de mar que me abandonam em labaredas líquidas. E neste instante em que estou desprotegido, repicam os sinos quando a tua sombra encontra a minha e logo me apresso a sorrir. Tu retribuis o sorriso e mostro as mãos vazias que sabem a sal e a cinza. Sabias que as lágrimas também ardem?
(…Tenho um sonho derramado nas escadas da entrada. Se por ventura o tivesse em mim, mesmo que preso ao forro de um bolso meu, era semelhante a estar morto no chão, como uma poça de sangue num pátio de uma escola. Pois estaria crispado contra o meu corpo embrutecido pela tua ausência. De tudo quanto de si existiria, não seria mais do que um rasto do seu quietismo ou vasto silêncio. Por isso me aparto neste quarto sem intimas esperanças, curvado sobre um livro, anulando-me nos seus ínfimos sentidos…)
Walter e Joaquim Gilvaz