Wednesday, August 31, 2005 

Danúbio...

Costumavas pegar na minha mão e segredavas-me ao ouvido palavras que me embriagavam os sentidos e me deixavam à mercê da tua vontade. Dissolvias as sombras nos teus passos e congregavas em ti uma estranha luz de certezas que entorpecia esta racionalidade absurda que me abraça. Escolhias uma estranha linguagem de gestos, de silêncios e de palavras que me inebriavam e me tornavam numa personagem desse teu mundo desequilibrado de ausências e de presenças fugazes.
Sempre me soubeste conduzir nessas tuas valsas pelos salões de Viena que me davas a conhecer apenas quando me falavas deles. E a valsa prosseguia como se guardasses Strauss na tua voz e o teu corpo obrigava-me a seguir-te em compassos ternários de envolvências.
Dançávamos em círculos demasiado perfeitos que circunscreviam promessas futuras e palavras despidas de presentes. Enquanto estávamos à minha margem falavas de sociedades secretas e do sabor da eternidade, contudo ambos desconhecíamos as longas cadeias de tempo que a construíam. E a valsa prosseguia nesta indefinição de sentimentos e das horas.
Contigo os segredos tinham a transcendência da cor e a valsa era revestida de ilusões! E contigo o Danúbio era multicolor e eterno…contigo o Danúbio sempre foi mais azul. Mas hoje a valsa cessou e o Danúbio continua a correr. Só não encontro sinais de ti.

Friday, August 26, 2005 

Da espera...

Ouvia caminhar lá fora e sentia-me invadido por seguranças inúteis. Afinal enquanto assim o fosse não seria em mim. Alguém caminhava nessas ruas que eu ia deixando conhecer, meras sucessões de passos que ganhavam existência e logo se extinguiam pela falta de rumo. Sempre me protegi arquitectando cantos angulosos e caminhos demasiado estreitos para serem cruzados a dois.
Ouvia passos desconhecidos e esperava, neste ventre de defesas inúteis, vê-los diluídos em fogueiras de desistências. Então celebrava mais uma vitória, não mais que uma vitória fracassada e vã.
Subitamente os passos conheciam a proximidade diminuída e traziam guardado a fonética dos encontros e o som das recusas vencidas. Apressava-me a fechar a porta na esperança de te deter. Chegavas. Batias à porta não como quem pede para entrar pela primeira vez, mas como se apenas tivesses perdido momentaneamente a chave e logo a porta se abria.
Aproximavas-te como a noite que antecipa a madrugada rasgando a distância dos instantes. Procuravas nos desvios do olhar razões do passado e logo me estendias a mão, a mim que no fundo continuo à tua espera enquanto me disfarço de auto-suficiências.

Wednesday, August 24, 2005 

Do sorriso...

No início havia sorrisos dispersos. Entre tantas formas de existir escolhias a mais cobarde e a mais ingénua. A mais feroz e a mais indefesa. Apenas sorrisos.
Tu sorrias e eu procurava refúgio em câmaras recônditas onde o teu sorriso não podia alcançar, porque eu fechava os olhos e mutilava os meus sentidos para não te ver chegar, enquanto pairavas etérea e envolvente sobre mim, como se o livre arbítrio fosse teu e o guardasses em elipses concêntricas de certezas. Defendia-me da tua presença e enredava-me cada vez mais nessa tua rede omnipresente. Nessa tua rede sem tréguas que prende e me deixa livre para me afastar, na certeza de que apenas existe o regresso qualquer que seja o caminho.
Tu sorrias nesta luta desigual e eu, vencido, acabava por te sorrir. Depois dizias que tinha um sorriso bonito e assim me desarmavas sem resistências. Sempre foste pródiga em me fazer acreditar em ti.
Amarravas-me e amordaçavas-me com o teu sorriso. Vendavas-me a razão quando dizias que o meu sorriso é como o silêncio. Sempre foi como o silêncio. E logo eu que me inundava de questões te perguntava o porquê. Tu respondias que também o meu sorriso não existia sozinho e que tal como o silêncio precisava de ser ouvido.
Depois viravas as costas e partias! Eu permanecia de olhos fechados, ouvia os teus passos misturarem-se com o esquecimento e, mesmo assim, sabia que estarias a sorrir.

Friday, August 19, 2005 

Estação das chuvas...

Porque o sentido do tempo é esparso e entranha-se no arredondamento das horas. Porque a sucessão intrínseca dos espaços se mistura e confunde nos limites humanamente imperfeitos do sentir. Porque na conjugação unificada de ambos se anuncia o despontar de uma nova estação.
Nesta estação despimos as suficiências que nos revestem e procuramos as partituras do infinito, aquelas que ardem em claves de sol e laivos de sonatas. Então somos feiticeiros de vontades, cuja magia é corpórea e tem a cor da transcendência. Essa magia é liquida e escorre pelas mãos e se transforma em sementes de nebulosas e de verdades insondáveis que têm a duração das chuvas.
Nesta nova estação de encontros e de definições, as manhãs são transparentes, têm o toque da seda e renunciam a si próprias sempre que as tardes emergem em cálices de fogo, nascem com o brilho do âmbar e diluem-se no aroma a serenidades. Então a noite tem lugar, essa mesma noite que insistimos em travar com as mãos, essa noite de intensidades crescentes que amaina e logo resiste, que nos adormece e logo insiste.
Porque a chuva é opaca e da água brotam fugas e alamedas. Porque celebramos rituais de passagem e de iniciação enquanto chove. Porque esta é a estação das chuvas.

Saturday, August 13, 2005 

Encenações...

Vem assistir a esta encenação de personagens irreais, aquelas que vou criando para me afastar de ti que te aproximas e te sentas na primeira fila. Eis-me aqui perante o público, onde somente tu te encontras em todos os lugares e em lado nenhum.
Virás certamente e eu subirei ao palco para mais um monólogo de improvisos e de distâncias, pois aqui os cenários são apenas cenários, nada mais que vulgares representações da realidade que te apresento. Essa realidade que tem a duração de uma noite desigual. Vem assistir a esta peça onde os sentimentos são de barro e de água, onde os recrio sempre que me vou moldando a um novo papel. Porque o que sinto agora tem a duração do presente, acrescentado ao passado e diminuído ao devir das esquinas das ruas da vida.
Vem e eu ressurgirei envolto em luzes fingidas, aquelas que me revelam despido de mim e vestido de todas as personagens que em mim ganham existência. Apresento-me uma vez mais como se não te conhecesse e levo-te a acreditar que tenho cheiro de pôr-do-sol, quando em mim se passeiam aromas de tristezas amordaçadas.
E no fim de toda esta encenação, as luzes apagam-se, o pano cai e tu baterás palmas e chamar-me-ás pelo nome.

Monday, August 08, 2005 

As minhas convicções são frágeis construções de areia...

Vivia com a convicção de que me tinha tornado inacessível, como se todos os caminhos estivessem à minha margem. Como se eu me furtasse a todos os encontros, mesmo aqueles que não chegaram a ter lugar. Pensava que me tinha tornado inexpugnável, como se todas as defesas que se edificaram em mim estivessem revestidas de suficiências de vidro.
Este era o mundo em convicções erigido, no qual me tranquei por dentro e fiz questão de me esquecer de todas as chaves. Este era o mundo que comungava das minhas certezas tão frágeis e que se protegia em muralhas de lugares perdidos e mãos vazias.
Foi então que surgiste, estilhaçaste as minhas paredes de vidro e caminhaste sobre estes resquícios meus. Serenamente enquanto o vidro te rasgava a pele seguiste impune à dor e era a mim que me doía. Inundaste as minhas fragilidades com a tua presença e deixaste arder as minhas fronteiras de imperfeições. E com a inocência de uma criança caminhaste sobre as minhas defesas como quem destrói castelos de areia.

Tuesday, August 02, 2005 

Despertares...

Seguiam numa mesma rua, aquela que começava num e terminava no outro, embora nenhum deles o soubesse. Passaram lado a lado em trajectórias paralelas que não tardariam a cruzar-se, como se o passado de um fosse o futuro do outro, como se o sentido do tempo de ambos se igualasse numa unidade de horas diluídas.
Seguiam lado a lado numa troca mútua de silêncios, aqueles que traziam em si o sequestro das palavras finais, sobre as quais repousava o som dos passos de ambos. Aproximavam-se a cada passo e diminuída a distância, respirava-se o encontro dos aromas de manhãs outonais e de noites primaveris, de chamas e de cinzas e de pegadas na areia e de marés desavindas.
Caminhavam pelas calçadas andrajosas das ruas do acaso, sabendo que mais ninguém os esperava. Somente eles.
Seguiam envoltos em esferas de enlevos e de ausências, sempre procurando o aconchego dos mantos onde despertam sentimentos que ressurgem das reminiscências da incerteza e quando as suas ausências se tocaram, os olhares encontraram-se e ambos descobriram que teriam lugar no outro.

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