Tuesday, August 31, 2004 

Qualquer refúgio se desconhece em clareiras de ilusões...

O romper da aurora sela o início da minha jornada. Cruzo ruas envoltas em densos nevoeiros sem saber o rumo a tomar. Caminho para qualquer lugar. Dirijo-me a todos os lugares e a lugar nenhum. Em todos os lugares e em lugar algum estaerei à minha espera. Culpo-me por permanecer nesta indefinição. Deixo que a culpa encontre abrigo em mim. Mais uma vez. A generalização de toda a culpa é banal. Toda a vida o fiz.
Encontro um caminho no rasto das recordações. Estranhos caminhos estes que dominam a minaz acção do esquecimento. Relembro o velho bosque entre memórias vagas. Procurei entre as árvores e as clareiras vestígios do tempo em que fui feliz. Ironicamente eu também fui feliz. A felicidade esteve no lugar onde os sonhos se misturavam com jogos de escondidas. Agora os sonhos escondem-se de mim.
Parti para o bosque para tentar encontrar-me, mas este já não representa o refúgio de outrora. É estranho como todos os refúgios se alteram. Todos os refúgios se vêem modificados por cada ilusão estilhaçada.
Este não é o bosque que conheci. Este não é o bosque que me acolheu. Descrevo-o por palavras que nunca chegarei a pronunciar.

"Caem folhas mortas sobre o lago!
Na penumbra outonal, não sei quem tece
As rendas do silêncio... Olha, anoitece!"
F. Espanca

Não foi neste bosque que me encontrei, mas sei que passei por aqui. Os resquícios da minha tristeza assim o indiciam. Parto deste bosque. Volto à indefinição das ruas diluídas em sombras.
Os primeiros lampiões antecipam a chegada da noite. Uma sucessão interminável de pequenas luzes que renascem a cada noite que se desenha no horizonte. Anoiteceu.

Monday, August 30, 2004 

Sonata de dúvidas e despedidas esparsas...

"Não sei onde me encontre nem sei quando:
O sentido das coisas esmorece
nas minhas sensações e logo esquece,
pois que no mais que ignoro vou passando."
A. Leitão


Esta é a derradeira dúvida. Aquela que precede a partida. Aquela que encontra refúgio na plenitude de um adágio.
Qualquer partida se dissolve em dúvidas. E todas são derradeiras. Todas são esparsas.
Como o são as despedidas...



Thursday, August 26, 2004 

O mestre das horas desiguais...

Antecedentes da partida...partirei para me procurar. Para me perder em presentes que se tornarão pretéritos. Para me encontrar em futuros que não serão meus. A noite será testemunha da minha partida. Esta noite que se prolonga indefinidamente. Esta noite que assinala a desigual passagem do tempo.
A janela está aberta. Antes de partir vejo-me inundado em marés de recordações. Ergo-me e fecho a janela. Um olhar para o exterior e ninguém vagueia pela rua. Ninguém se encontra com a madrugada nos becos que tardarão a convergir em ruas. A janela está fechada. Tenho medo que as minhas recordações se evadam. Apenas serão minhas se as mantiver encerradas em mim e nesta divisão. As recordações não existem para serem partilhadas. As recordações existem para serem guardadas até se diluírem no vazio do esquecimento.
As horas parecem não passar. Paradoxalmente, as horas passam velozmente. Vejo-me assombrado pela irreal existência do tempo. Esse mestre das horas intermináveis. O mestre das horas passadas e por passar. Todas as horas são diferentes. Todas as horas são desiguais. Porque sou diferente a cada hora que por mim passa.
O guardião do tempo despede-se. A partida está iminente.
Há uma carta de despedida por escrever. Escrevo a despedir-me de mim mesmo e de todas as existências que não partirão. A carta diz somente:

Partirei! Vou procurar-me em todos os rostos que encontrar. Em todos os lugares por que passar.


Ninguém lerá esta carta. Contudo, irei partir com a ilusão de que alguém saberá onde me encontrar. Chegou a hora de partir. Corto as amarras que me prendem. A passagem inelutável do tempo assim o determinou.



Wednesday, August 25, 2004 

Reversus situs...

Subitamente sou arrancado ao sono. Aquela estranha aparição invadiu o reduto dos sonhos e fez-me despertar.
Deixo a angústia de vigília e procuro um cigarro. Acendo-o. A chama ténue ilumina o quarto por breves momentos. Nesta chama estiveram concentrados todos os fogos. Todos os fogos, o fogo.
O cigarro está aceso. Vejo-me rodeado pelo fumo que dele se liberta. Levo-o aos lábios e fumo-o lentamente. Saboreio cada trago e fumo-o como se estivesse a reconciliar-me com a vida.
A cinza cai ao chão, contudo não lhe atribuo qualquer importância. A cinza marca a passagem das horas. Afinal esta é a cinza das horas...
Dentro de momentos o cigarro apagar-se-á. O cigarro apagou-se. Não há mais fumo libertado, apenas cinza no chão. Abro a janela. O vento invade o quarto e dispersa as cinzas como quem dispersa memórias.
Foi breve a reconciliação com a vida. A finitude do cigarro desvenda-me a angústia que sempre quis esconder. Sobretudo de mim.
Estou aqui quando não devo estar, no entanto, não sei onde devo estar. Procurar-me-ei em qualquer outro lugar que não aqui. Em qualquer lugar contrário a este...

 

Perdoar é apenas uma palavra...

Regresso ao quarto. Retorno ao espaço que outrora me atormentava e protegia. Retorno ao lugar que se resumia à minha vida. Sou recebido como se eu nunca houvera partido, contudo sinto-me um estranho.
Dirijo-me à janela. Oiço um ruído atrás de mim. O som da porta do cárcere a fechar. Alguém a fechou. Volto-me e revejo-me. Sinto-me visitado por mim mesmo. Como se me pudesse ver após ter saído do meu corpo.
O seu olhar é gélido. O seu olhar é reprovador. O seu olhar que afinal é o meu olhar... No violento silêncio das suas palavras, desvendo uma pergunta:
- Agora que regressaste porque partiste?
A perturbação condiciona-me e não consigo responder. Nem eu próprio conheço a resposta. Passados breves segundos respondo:
-Regressei! Apenas sei que regressei.
Sem proferir qualquer palavra, o diálogo flui:
-"Quem parte de um lugar tão pequeno, mesmo que volte, nunca retorna."
-Alguma vez me perdoarás por ter partido?- questiono.
Assinado o armistício, ele devolve-me a pergunta:
-De que adianta perdoar se não somos capazes de esquecer?
Sinto-me desprotegido perante mim próprio. Ele vira-me a costas e dirige-se para a porta. Sem me olhar nos olhos continua:
-Perdoar é só um código fonético. Nada mais do que isso. Perdoar é somente uma qualquer palavra. Como todas as outras. Vazia.
Remeto-me ao silêncio. Antes de fechar a porta profere em tom de despedida:
-Perdoar-te-ei se tu o conseguires fazer.
Oiço a porta a fechar-se. A porta está novamente fechada.

 

Todos os acasos conspiram...

Desperta-me a noite que existe em mim. A praia converte-se no rumo a tomar e encontro-a deserta. Como se ela própria, tal como eu, estivesse mergulhada nos seus pensamentos. Como se ela estivesse à minha espera.
Sento-me à beira do mar e deixo-me envolver pelo manto de estrelas que a noite me oferece. Olho o horizonte...nunca a noite e o mar estiveram tão próximos.
Disperso-me entre memórias desordenadas e pensamentos vagos. Dou por mim a tecer considerações sobre o curso da vida. Porque razão optamos por um caminho em detrimento de outro? Porque tomamos uma decisão e não tomamos outra absolutamente contrária? Porque motivo conhecemos umas pessoas (chegaremos algum dia a conhecer verdadeiramente?) e não outras? São tantas as dúvidas que assolam o curso da vida...tão vastas como todos os caminhos do curso da vida.
A justificação para tudo isto residirá apenas nos desígnios do acaso? Chamo-lhe acaso como podia apelidá-lo de coincidência. Podia ainda encará-lo sobre outro ponto de vista e chamar-lhe-ia pura e simplesmente destino. É estranho como para uma mesma irrealidade existe uma multiplicidade de nomes. Cabe então a cada um conferir-lhe a designação que entender...
Chamar-lhe-ei apenas acaso...nada mais que acaso.
Pergunto-me acerca da sua natureza. Parece-me que não passa duma construção humana tão frágil como todas as construções humanamente erigidas. O acaso não passa dum misto de inércia, de fragilidades e de temor empregue todas as vezes em que não queremos assumir os riscos das nossas opções, e, consequentemente, da nossa vida.
Levanto-me e sigo o meu caminho. Olho para o céu e a noite presenteia-me com uma chuva de estrelas como que a despedir-se de mim.
Atribuo ao acaso o estatuto que lhe pertence. Entrego nas suas mãos a minha vida. Vivo ao sabor das suas conspirações. Afinal o princípio do acaso é o único regente do mundo.

Tuesday, August 10, 2004 

O jardim das paixões extintas...

Erro pelas ruas sem destino. Antes apenas conhecia as alamedas de despedidas que construí no quarto. Agora percorro outros caminhos. Caminhos desconhecidos mas que não me atormentam como me atormentavam aqueles que via da minha janela e os que eu próprio imaginava.
Sigo os caminhos traçados e encontro um jardim totalmente diferente dos jardins que eu houvera visto e imaginara. Ao contrário dos outros jardins este estava fechado.
Abro o portão e entro. Curiosamente neste jardim não vejo ninguém. Percorro o jardim e as todas as árvores estavam nuas. As folhas caíram como lágrimas após o baile do vento.
Sinto o cansaço invadir-me e procuro um banco para descansar. Perto dum canteiro de amores-(im)perfeitos encontro o que procuro.Estranhamente todos os bancos foram feitos apenas para uma pessoa.
Olho à volta e o meu olhar encontra uma fonte...ergo-me e caminho até lá. Era uma fonte dos desejos, no entanto estava seca e abandonada. Parece que já ninguém acredita em desejos realizados desta forma.
Dirijo os meus passos para a saída...enquanto isso questiono-me porque razão este jardim permanece sem nome. Passo a passo continuo a encaminhar-me até ao portão. Finalmente atribuo um nome ao jardim...fecho o portão. Tudo fica da mesma forma como quando entrei no jardim. Apenas uma coisa mudou, agora tem um nome.

Monday, August 09, 2004 

Não oiço a chuva que cai mas o silêncio em que ela cai...

As horas arrastaram-se infinitamente e lá fora nuvens negras povoaram o céu. Subitamente começou a chover. A chegada da chuva apenas cumpriu os indícios da sua presença, tal como uma sentença já conhecida. Até a Natureza é tão previsível...
Durante três longas horas choveu. Todo este tempo a chuva bateu furiosamente nas vidraças, despertando-me da letargia que já tomei como minha. Este som foi o mais abstracto apelo que já ouvi.
Percebi o que tinha que fazer. Corro para a porta e abro-a. Sem temor ou angústias.
Corro até lá fora e deixo a chuva acolher-me. Sacrifiquei alguns dos meus medos nesta minha celebração.
Continuou a chover e desta vez choveu em mim. Desta vez choveu apenas por mim.

 

Parar de esculpir demoras...

Numa folha em branco tão vazia como abstracta começou a ganhar forma uma chave! Uma chave que à primeira vista não se consegue decifrar o tipo de fechadura em que vai entrar nem o tipo de porta que vai abrir!
O desenho estava terminado e a chave parecia ganhar vida própria...Neste quarto onde todos os silêncios são abstractos e todos os murmúrios inaudíveis, esta chave parece ser a resposta para os meus medos! O apelo da libertação...
Tomei em minhas mãos a chave e dirigi-me a porta do meu cárcere onde o prisioneiro e o carcereiro se encontram do mesmo lado e se confundem na mesma pessoa.
Passo a passo aproximei-me da porta...lá fora a lua nua e eterna iluminava o meu caminho. Detenho-me.
Olho para a chave que abre todas as portas. Pego na chave que está na fechadura e rodo-a.Uma vez e outra...a porta está pronta para abrir.

Friday, August 06, 2004 

Um dia será tarde demais...

“Os mortos doem menos pela sua ausência do que por aquilo que entre eles e nós não foi dito” S.Tamaro

São tantas as palavras que ficaram por dizer, são tantas as manifestações de carinho que ficaram por demonstrar, é tão grande a angústia por não termos feito tudo o que estava ao nosso alcance para termos estado mais tempo junto da pessoa... é sobretudo tão grande o vazio e a saudade que invade o nosso coração.
Com que direito pode a morte destruir laços de união e afecto? Porque é que as pessoas têm de morrer? Para dar significado à vida?
Não sei quais são as respostas, talvez nunca virei a saber... é tão amarga e dolorosa a sensação de perda. Restam as memórias e pouco mais. Tudo o mais é cinza, pó e nada.


Ela veio novamente...obscura e sombria como todas as vezes em que veio. Ela veio outra vez e levou com ela mais uma existência como todas as vezes em que veio. Ela veio novamente e levou mais um passageiro rumo à eternidade. Como todas as vezes em que veio. Ela veio outra vez ... a morte veio mais uma vez.

Thursday, August 05, 2004 

Tiramos fotografias para nos lembrarmos ou para se lembrarem de nós?...

A madrugada foi estranhamente vazia. Estranhamente desprovida de qualquer existência! Apenas eu... o prisioneiro das recordações!
O silêncio, o eterno cúmplice da madrugada, era cortado pelo ruído dos meus passos pelos caminhos da ilusão.
Descobri algumas fotografias antigas...daquelas em que os sorrisos forçados já desapareceram. Momentos eternizados sob a forma duma imagem que perdura até desaparecer na cinza do esquecimento. É ténue a fronteira entre a eternidade e o esquecimento.
Sempre me perguntei porque tiramos fotografias. Forjamos um sorriso enganador que dissimula uma felicidade inexistente e somos possuidores dum sorriso para a posteridade...para a eternidade. Sorrimos... é isso que os outros vêem. È isso que fica eternizado. Tiramos fotografias para relembrarmos sorrisos ou , pelo contrário, tiramos fotografias para que os outros guardem os nossos sorrisos? Tiramos fotografias para nos iludirmos ou para iludir os outros?
Talvez seja por isso que não gosto de figurar nas fotografias...

Tuesday, August 03, 2004 

Fogo, Vento e portas por abrir...

"Tenho por princípio
Nunca fechar portas
Mas como mantê-las abertas
O tempo todo
Se em certos dias o vento quer derrubar tudo?"
Jorge Salomão

Eu pelo contrário tenho por princípio nunca abrir as portas...mantenho-as fechadas o tempo todo porque depois de abertas tudo o que é meu ou tudo em que me revejo pode ser levado pelo vento de tão frágil que é!
Se eu tiver que perder tudo isto prefiro subjugá-lo ao poder do fogo.A sua destruição será mais lenta e poderei ter tudo isto como meu durante mais alguns momentos!A reconfortante ilusão da sua posse...Ao passo que o vento levaria tudo isto com a máxima rapidez!É assustador a força do vento!A ele nada nem ninguém o pode deter...por isso fecho todas as portas!
É esta a diferença entre o fogo e o vento.

Monday, August 02, 2004 

Acreditar é ver no rosto dos outros o rasto do infinito...

Mais uma vez a porta não se quis abrir... dei por mim vagueando sobre a minha existência já que a dos outros não atravessam portas! Nenhuma existência é suficientemente etérea para o conseguir fazer! A minha encontra-se resumida a quatro paredes, uma janela e uma porta...
Perguntei porque não acredito em mim. Porque tudo o que digo "é mentira esparsa" (alguém algum dia o disse e eu nunca o acreditei...vejo agora o quão verdadeiro é). Preferi sempre forçar a minha farsa!
Posto isto interroguei-me acerca de acreditar nos outros. Quando é que acreditamos naquilo que os outros nos dizem?? Talvez apenas quando isso for verdade para nós mesmos! Perguntei-me infinitamente o que é acreditar nos outros. As hipóteses apesar de serem todas viáveis não pareciam responder a esta minha questão. Subitamente esta hipótese começou a ganhar forma...revestiu-se de força suficiente para resistir à falsificabilidade e trouxe a resposta à minha dúvida! Acreditar é ver no rosto dos outros o rasto do infinito...
Obrigado a todos aqueles que me mostram o rasto do infinito num olhar, num gesto ou na sua simples presença. Obrigado a todos os que do outro lado da porta (o que quer que esse lugar seja) experimentam abri-la. E a chave continua por dentro...
O meu infinito converge no infinito de todas essas pessoas e vai muito mais além desta porta que teima em não abrir. Porque o infinito ao contrário das existências é absolutamente etéreo...

on-line

Powered by Blogger

online
Spyware Remover Page copy protected against web site content infringement by Copyscape